sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Artigo




Fotografia enquanto arte e denúncia
por Anelise Witt



Qualquer pessoa que dedique algum tempo a reflexão sobre a sociedade atual já pode perceber o quão a tecnologia digital está inserida em nossas vidas. Um bom exemplo de aparelho revolucionado pelos avanços da tecnologia é a máquina fotográfica. No início do século era artigo raro, pouquíssimas pessoas a possuíam devido seu elevado valor. Com o andar da carruagem pelos anos do “século das revoluções”, o século XX, observamos que este aparelho capaz de congelar um instante e passá-lo para o papel, com perfeição jamais alcançada pelos maiores mestres da pintura naturalista desde o início da história da arte, diminui em tamanho e aumenta em números.

A máquina fotográfica analógica profissional torna-se uma aliada dos artistas, publicitários e jornalistas, e ganha também sua forma compacta, para “pessoas comuns” registrarem seus momentos com autonomia. Acelerando bruscamente nosso passeio pelo século passado, chegamos à era digital, e a máquina fotográfica também entra nessa. As facilidades dessa tecnologia são enormes, o custo cai consideravelmente, o que democratiza o acesso a essa ferramenta tão útil ao homem. Hoje, qualquer um com uma máquina digital é apto a produzir e editar suas fotos sem necessidade de intermediários, mas não é porque sabemos escrever que seremos todos poetas ou escritores, tirar fotos não faz de ninguém fotógrafo ou artista.

A fotografia já conquistou seu lugar ao sol no universo das artes, é considerada uma linguagem expressiva legítima. A intenção do fotógrafo é o que faz a diferença entre as fotografias artísticas, documentais e publicitárias. A fotografia enquanto arte ganha vantagem por conseguir agregar todas as outras e ainda sim permanecer com seu status artístico. Essa característica é presente na arte contemporânea, não só em fotografia, mas em todas as outras linguagens plásticas expressivas, a tênue divisória deixada pelo modernismo do início do século é totalmente rompida.
Entre os tantos “ismos” do modernismo, podemos mencionar o Realismo Socialista, que na linguagem da fotografia utilizou sensivelmente o caráter documental da fotografia jornalística para produzir uma arte politicamente engajada. Ben Shahn dedicou parte de sua carreira de artista em retratar os trabalhadores do campo, seu trabalho artístico é inegável, porém a denúncia, típica do jornalismo, também está presente.
Para eternizar esses momentos enquadrados por humanos e congelados por uma máquina, o World Press Photo premia todos os anos a fotografia mais marcante. A premiação ajuda a dar visibilidade, imagens como a menina queimada na guerra do Vietnã , e o protesto de estudantes na Praça da Paz Celestial, em Pequim, que ficaram guardados na memória de toda a humanidade, e serviram para, ao menos, uma reflexão sobre a insanidade e crueldade que o homem é capaz. O fotógrafo premiado em 2005 foi Finbarr O’Reilly, um inglês que mora desde 2000 no Senegal, África.
O’Reilly estava em centro de emergências alimentares na Nigéria, mantido por Médicos Sem Fronteiras, por ter comido um espaguete feito com água contaminada. Considerava-se com sorte, pois ao menos tinha o que comer, a maioria dos que esperavam por uma consulta médica estavam com séria desnutrição. Ao esperar por atendimento, o fotógrafo observou uma cena que o fez esquecer por instantes que estava ali para ser tratado, e não a trabalho. Finbarr fotografou Fatou Ousseini, uma mãe que levava seu filho com danos visíveis decorrentes da alimentação insuficiente. A criança de apenas um ano, Alassa Galisou, já apresentava sintomas de desnutrição grave, sua pele já não estava presa aos músculos, o que dava a impressão de serem garras, e não uma mão infantil como era de se esperar. A situação fez com que Finbarr se sentisse no dever de registrá-la, mostrar que Fatou não é um caso único, ela representa um povo inteiro que está sofrendo com doenças tratáveis como a desnutrição, malária, tuberculose e a fome. Essa doenças matam muito mais que a AIDS, e todas elas tem cura.

A fotografia de O’Reilly mistura horror e beleza. Não a beleza das coisas harmônicas e agradáveis, mas a beleza poética que há no ordinário e no horrível. Os que possuem uma sensibilidade perceptiva enxergam além da pura informação visual, não vêem apenas uma mulher e seu filho, mas uma densa atmosfera de significados.

Na mesma época estava ocorrendo o mega-evento LIVE 8, decorrente do G8. O show tinha o objetivo de unir astros da música em cinco shows ao redor do mundo durante 24 horas para chamar a atenção para a crise na África.
A situação na África é sem dúvida emergencial, um continente inteiro em desespero, os que deviam ajudar, pois estão em posição de líderes, não o fazem. A corrupção é a pior das doenças, pois não é tratável por medicamentos, a falta de honestidade e ética são males muito piores, só o próprio “doente” pode curá-la. Infelizmente essa situação não é um mal que afeta só os africanos, aqui no Brasil também vivemos essa realidade. O nordeste é a região mais afetada, a que mais sofre com a corrupção desmedida, mas também não é a única. O Rio Grande do Sul é o estado com maior IDH e ainda sim encontramos seres humanos em situações piores que de animais. O brilhante documentário Ilha das Flores de Jorge Furtado, que recebeu premiações de nível internacional, mostra uma realidade que nos parece ficção, e seria muito bom se realmente fosse. O documentário foi filmado na capital Porto Alegre, mas mesmo em Santa Maria, uma cidade interiorana também chamada de cidade universitária, com um número expressivo de elite intelectual, nos deparamos com imagens desconcertantes.

O calçadão de Santa Maria é um ponto comercial privilegiado, mas em meio aos transeuntes preocupados com seus compromissos e com as vitrines, vemos mães índias com seus filhos sentados no chão com alguns artigos artesanais a venda ou apenas a espera de algumas moedas, sem perspectiva alguma, a não ser de sobreviver. Talvez muitos de nós já estejamos acostumados com essa cena, passamos reto com nossos mp3 players e Ipods no ouvido, esquecendo do nosso entorno, pois temos planos pra vida toda, estamos aqui para conseguir nosso diploma e exercer a profissão que escolhemos.

Para alguns a arte é supérflua, que só é de interesse de classes economicamente favorecidas, pois dispõem de recursos para o consumo e desfrute dela. Parte da afirmação é verdadeira, o dinheiro facilita o acesso à cultura, e a arte está inserida no contexto cultural. Segundo a ONU, as três necessidades básicas do homem são a saúde, educação e cultura. Alguns acham que a saúde é o mais importante, e sem dúvida é, mas quem faz uma escolha dessas está sem as necessidades básicas supridas, ou é um ignorante por vontade própria. A fotografia enquanto arte é cultura e é conhecimento, pode ser também uma ferramenta de denúncia de injustiça aos que nem ao menos possuem saúde, que ficam em filas de espera em um centro de atendimento no meio da África com a morte a espreita.
Anelise Witt é estudante de Artes Visuais da UFSM. Algumas de suas obras podem ser vistas aqui.
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Este é um artigo assinado. O seu conteúdo é mérito e responsabilidade do autor e pode ou não refletir a opinião do redator do Diário da Cratera Urbana.

3 comentários:

Anônimo disse...

Mas q belíssimo texto!!!!!!! Concordo em gênero, número e grau com a autora! opa, sou eu! hehehehe Bom, esse comentário foi brincadeira, não sei mt o q falar do q mesmo escrevi, já havia prometido a tempos para o redator deste blog um texto a respeito de fotografia com caráter d denúncia. Aki o está!
inté!!

Fagner Garcia Vicente disse...

Demorou, mas quando veio, veio bem! Um abraço, menina

Lucas disse...

Ae!
Parabéns pelo texto!