terça-feira, 16 de outubro de 2007

"Meu rico dinheirinho" - parte II

Como Thoreau, gostaria de viver num mundo em que não tivesse de dar um tostão ao Estado. Mais do que isso, gostaria de viver num mundo em que nem Estado, nem dinheiro existissem. Contudo, sei que esse mundo livre existe apenas no nosso horizonte, para mostrar a direção de nossa caminhada. Mas hoje e aqui, onde se contrapõe o mercado ao Estado, acredito que os impostos se justificam plenamente.

Correndo o risco de ser considerado um grande heresiarca, digo que a carga tributária no Brasil não é grande, apenas mal distribuída. Afeta demais os pobres e pouco os ricos. Aliás, melhor distribuída, a carga deveria até aumentar. O imposto de renda, Professora Loraine, por exemplo, deveria ser realmente progressivo. Hoje são apenas duas alíquotas: 15% para quem ganha de R$ 1.313,25 até R$ 2.625,12 e 27,5% para quem ganha mais do que isso. Poderia começar com 1% sobre rendimentos superiores a R$ 1.000,00 (lembre-se que a grande maioria da população ganha menos de R$ 800,00) e chegar a 50%, 60% sobre as maiores rendas, como a dos banqueiros.

O imposto sobre as grandes fortunas, previsto constitucionalmente, mas jamais implementado, deveria ser o mais importante num país como Brasil, onde riqueza e miséria extremas convivem. No entanto, são aumentados os impostos cujo ônus é repassado ao longo da cadeia de consumo, como o ICMS e o ISSQN. Nesses casos, quem realmente paga são os trabalhadores, os únicos que não podem passar adiante o “valor embutido”. Embora os comerciantes, profissionais liberais e prestadores de serviço em geral reclamem indignados, os verdadeiros "cidadãos de bem que arcam com os impostos" são os assalariados mais pobres, que sustentam, inclusive, a Previdência. Seu dinheiro já financiou habitação para a classe média, pontes e hidrelétricas. As maiores do mundo, aliás.

Mas há outra questão. A classe média é mais beneficiada pelo Estado do que os pobres. Estes não têm saneamento, contam com transporte e educação precários. Moram longe dos principais serviços públicos e, não raro, são humilhados por servidores estatais em filas intermináveis. Por isso, devem ser cobrados tributos compensatórios, como a contribuição de melhoria.

Mas – contesta a opinião geral –, mal ou bem distribuída, a carga tributária no Brasil chega a 35% do PIB! Eu respondo: e daí? Eu acho pouco. Ora, se a única distribuição de renda do Brasil é (mal e parcamente) feita pelo Estado, de saída, está limitada a um terço da produção. Se considerarmos que desse percentual, três quartas partes vão para o pagamento do serviço da dívida externa, resta menos de 10% do PIB para garantir os serviços públicos, a Previdência Social (maior redistribuidora de renda do país) e os programas sociais.

É claro que é preciso contabilizar ainda a sonegação, que reduz drasticamente a arrecadação, e os desvios de verbas públicas, que diminuem os investimentos. Ao meu ver, a desigualdade social no Brasil tem muito a ver com o histórico nanismo do Estado.

Alberto Deodato, clássico autor de Direito Financeiro, em meados do século passado já dizia que a concepção liberal de Estado como parasita dos lucros privados não se sustentava. O dinheiro arrecadado retorna em utilidades que jamais seriam supridas pelo mercado, pois não são lucrativas. Em outro enfoque, Celso Furtado demonstra à exaustão que os únicos períodos de desenvolvimento (não mero crescimento) do Brasil somente foram possíveis pela intervenção do Estado na economia.

A iniciativa privada, além de não desenvolver o país (remetendo a maior parte dos lucros às matrizes das multinacionais), não redistribui renda. Isso simplesmente porque a riqueza produzida pelos trabalhadores é substancialmente maior do que eles recebem como salário. O mercado concentra o capital. É da sua natureza. Por isso, precisamos de um Estado forte, com recursos e apto a servir como instrumento de transformação da sociedade.

3 comentários:

Palude1986 disse...

"Imposto", nada mais é do que uma palavra bonitinha para algo que nada mais é do que extorsão. Da mesma forma que "guerra" é um mero genocídio entre agentes do Estado. Alterar o nome das coisas não altera o seu significado real.
...
Impostos diminuem a riqueza geral da sociedade. É errôneo pensar que o montante arrecadado pelo Estado, dessa forma, possa ser simplesmente redistribuído, criando uma "sociedade mais igualitária".

No livre-mercado puro, cada um recebe exatamente à medida do que produz de interessante para a sociedade. A "fórmula da riqueza" é produzir ou vender algo para o que as pessoas estejam dispostas a gastar seu dinheiro para obter. Quem não tem nada de interessante para oferecer, nada receberá.

Em um sistema no qual as pessoas estejam sujeitas a receber de acordo com alguma forma padronizada de distribuição - o que Robert Nozick chama de "patterned theories of justice" - elas estarão, inevitavelmente, sujeitas ao arbítrio de alguém, nem que seja no momento legislativo da escolha do padrão a ser adotado. Seja o "mérito", seja "necessidade", ou qualquer outra coisa.

E é justamente por isso que essa "justiça social" que o autor defende, em prol dos mais pobres, é um "tiro no próprio pé". Com ela, nada mais se faria senão aumentar a disparidade, porém de forma não só antinatural como também estratificada e hierarquizada - passariam a existir duas classes: uma de ricos - ricos com o poder de distribuir - e de pobres - aqueles que só podem receber o que os primeiros determinam.

A lei de ferro das elites vale sempre. Ao tentar se desfazer de uma elite, a dita "econômica" - que, na verdade, não possui poder em sentido estrito algum - faria-se surgir outra, muito mais perigosa, que é a elite dotada de poder político sobre o mundo econômico.

Palude1986 disse...

E continuando. O autor coloca, ao final de seu texto, que "O dinheiro arrecadado retorna em utilidades que jamais seriam supridas pelo mercado, pois não são lucrativas".

Ora, nada mais equivocado. Uma questão fulcral de toda análise econômica é procurar enxergar o que não se vê, e não ficar adstrito ao que se observa com facilidade.

As pessoas vêem uma auto-estrada, ou uma grande ferrovia, ou uma usina elétrica construídas pelo Estado e logo pensam: "não fosse o Estado, isso não estaria aí". Ou: "sem X, construído pelo Estado, estaríamos bem pior".

É uma análise míope. O dinheiro que o Estado gastou realizando tais obras poderia ter ficado com o setor privado, que teria empregado-o onde os desejos e a demanda das pessoas determinassem como sendo mais necessário.

O Estado, quando gasta, costuma gastar mal: como não atua de acordo com o sistema auto-regulatório dos preços de mercado (que nada mais são do que informações acerca das necessidades mais urgentes do agregado de consumidores da sociedade), seus dispêndios tendem a ser, essencialmente, desperdícios.

Antes de se pensar que "tal obra era necessária", deve-se analisar se era realmente tão imprescindível a ponto de a iniciativa privada não ter tentado tomar as rédeas de sua realização. Ou, em outros casos, o que está impedindo o setor privado de fazê-lo. Não raro, é a própria ação do Estado - que, depois, costuma acusar o mercado de "falho", por ter permanecido inerte ante os muros que o próprio Leviatã lhe levantou...

Palude1986 disse...

Logo após, o autor cita Celso Furtado.
É verdade, o período de maior desenvolvimento do país foi, realmente, também o período de maior intervenção estatal no domínio econômico.

Mas qual seria a relação de causa-e-conseqüência? Teria o país crescido por causa do Estado...ou a despeito do Estado? É extremamente importante lembrar, nesse sentido, que as grandes crises pelas quais passou a economia nacional foram todas - todas - provocadas pela ação estatal.

A da década de 70, pela contração frenética de dívidas e o gasto deste montante em obras gigantescas e desnecessárias, aliado à crise do petróleo (deflagrada por um conluio de...Estados, desejosos de monopólio). Na década de 80, tivemos hiperinflação, cuja raiz foi, também, o Estado - com as suas máquinas impressoras de moeda. Inflação é um fenômeno exclusivamente monetário. Nada tem a ver com "ganância de empresários".
...
E, para finalizar, comento a última colocação do autor, "a riqueza produzida pelos trabalhadores é substancialmente maior do que eles recebem como salário".

Isso é a mais-valia de Marx. E, a título de conhecimento, não é mais levada a sério por muitos marxistas modernos.
Foi refutada ainda no século XIX por Böhm-Bawerk. E, depois do surgimento da Teoria Subjetivista do Valor (em contraponto à Teoria Objetiva de Marx), virou mera curiosidade histórica.

O que o trabalhador recebe é um adiantamento pelo lapso de tempo existente entre a produção e a venda da mercadoria.

Tome-se como exemplo a produção de um trem, o qual, digamos, leve 1 ano para ficar pronto para uso. Antes que o trem seja, efetivamente, um trem, e esteja pronto, por que o empregado deveria receber algo logo no primeiro mês de trabalho? Aquilo que ele está produzindo sequer tem valor de uso (trata-se uma máquina incompleta, sem qualquer serventia). O "capitalista" só receberá o valor da máquina após a venda desta - o que só se dará quando ficar pronta. Logo, o trabalhador só deveria receber seu salário no momento em que o "capitalista" auferisse seus rendimentos.

Mas ocorre que o trabalhador recebe antes do "capitalista". Recebe um salário por mês. É um adiantamento em relação ao que o "capitalista" vai receber depois - e, como sabemos, pela lei de que "o ser humano prefere, ceteris paribus, um bem hoje ao mesmo bem em data futura", e necessário um "desconto" ao trabalhador.

O fato de o trabalhador receber menos do que a soma total dos lucros do "capitalista" se dá, enfim, porque este recebe depois, e aquele, antes. O "capitalista" só terá seus lucros - se os tiver! - quando a máquina estiver pronta. O empregado não precisa vê-la vendida para receber o seu salário. É o juro, decorrente do lapso de tempo existente em tal situação, que justifica a diferença que Marx chama de "mais-valia".