quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Menos gaudério e mais gaúcho

No apagar das luzes de mais um vinte de setembro proponho uma pequena reflexão acerca do gaúcho e sua representação. Quem quiser uma análise histórica e sociológica mais qualificada, visite o Diário Gauche e veja os ótimos textos de Cristóvão Feil a respeito.

Gostaria de fazer uma breve análise do gaúcho, enquanto figura histórica, e sua representação ideológica atual, especialmente pelo chamado “Movimento Tradicionalista”. Antes, no entanto, gostaria de fazer uma ressalva. Há um elemento nesse debate que deve ser pesado: o gaúcho não é apenas uma personagem histórica ou uma representação cultural, um mito. É um elemento vivo e atual, que sobrevive, transformando-se, adaptando-se à transformação do seu mundo.

O precursor da liberdade

O gaúcho surge como subproduto de uma substancial transformação histórica, com choque abrupto e conflituoso de diversas etnias e culturas no território hostil do pampa. Órfão das raças que o constiutuem, el gaucho, miscigenado genética e culturalmente, percorre o pampa que lhe pertence (não como propriedade, mas como habitat) em busca de uma identidade. É um pária, não aceita patrão, não dura em nenhuma estância e foge dos contínuos recrutamentos forçados para a incessante guerra de fronteiras. Qual seu lado nessa disputa? É espanhol, português? Não. Tampouco é negro, ou índio. É uma figura humana nova, o precursor de um novo povo.

Os dominantes daquele imenso e despovoado território – estancieiros portugueses/brasileiros ou espanhóis/castelhanos – o combatem. O gaúcho é uma praga, um potro xucro, sem cabresto. Assim também as chinas, mulheres livres da família e de outras prisões, são as primeiras gaúchas, emprestando seu ventre à produção desse povo ainda sem identidade.

O gaúcho é o contraponto da estância. A antítese desse mundo sob o domínio absoluto do patrão, onde a terra – mãe de todos – é apropriada por poucos. No mundo del gaucho não há aramado, não há propriedade. Na sua luta contra o cabresto que o persegue e tenta domesticá-lo, o gaúcho é o precursor da liberdade.

A domesticação do gaúcho: o gaudério

Contudo, o gaúcho foi derrotado. Quem venceu foi a estância. Maneado, domado, é preso nos galpões, como os escravos dos quais descende. Domesticado, explorado, faz-se peão, mantendo no íntimo o velho gosto pela liberdade, que se trai em seus olhos tristes ao fitar horizontes largos ou ao fecharem-se para sentir o vento em um galope mais forte.

Mas se a liberdade foi perdida no pampa dividido por cercas, a sua busca por identidade continua. O mundo se transforma, e o gaúcho com ele, pois não é um ser anacrônico, condenado à extinção. O gaúcho do chiripá e da bota garrão de potro, veste hoje a bombacha e o chinelo havaianas, ou a calça lee e o tênis, no corre-corre urbano. Poucos ainda sustentam-se em cima do cavalo. Alguns puxam a carroça nos peraus das grandes cidades, repontando latas, plástico e papelão.

Enquanto isso, os descendentes da oligarquia estancieira, reunidos nos chamados CTGs, recriam a imagem do gaúcho, ao sabor de suas conveniências. O pária, vira patrão. O antigo inimigo da estância se transforma em seu subalterno. Lhe atribuem valores, vestes, costumes que jamais foram seus. Por fim, fantasiam-se e trazem às ruas o mais grotesco arremedo do gaúcho: o gaudério, um estereótipo do mito guasca, impregnado de valores próprios do conservadorismo.

O tradicionalismo inventou um mito e desja imobilizá-lo. Nega as transformações sociais, nega que o gaúcho mude, interagindo com um mundo em mudança. Ora, se não fosse essa incrível capacidade de adaptação do gaúcho, como poderia ter sobrevivido em sua origem? Ou quando aprisionado nas estâncias? Ou então quando expulso destas para as periferias das grandes cidades? O gaúcho não é estático, ele se transforma, mas não se termina. Mudar não significa perder a identidade, mas encontrá-la.

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